Mino Carta vai reescrever o Evangelho
O editor de “CartaCapital” anuncia, num antirromance, que é o Senhor da Pureza e ajusta contas com a família de Roberto Civita, que o demitiu da revista “Veja”
Quem diz que o ego do jornalista e pintor Mino Carta, diretor de redação da revista “CartaCapital”, é hipertrofiado não pode deixar de ser chamado de amante de redundâncias. Mino Carta se acha o mais puro dos homens e, por extensão, o melhor jornalista do Brasil, quiçá do mundo — depois de Claudio Abramo, diria o italiano-brasileiro. É o que sobressai do romance “O Castelo de Âmbar” (Record, 400 páginas). Estranhíssimo roman à clef. Sustentar que “O Castelo de Âmbar” é romance talvez seja mais uma gozação de Mino Carta.
“O Castelo de Âmbar” é o antirromance, não no sentido literário, ao modo de “Finnegans Wake”, de James Joyce, ou de “Aquela Confusão Louca da Via Merulana”, de Carlo Emilio Gadda, e sim no aspecto mais cru: não há literatura nenhuma no livro — só fatos, cozidos, é verdade, como quer a malícia do autor. Mas o jornalismo literário de Mino Carta é passional: apresenta a sua versão com ênfase e a dos outros, os “inimigos”, em espaço mínimo. O romance seria literatura ou fuzilaria? Talvez vendeta.
Se “O Castelo de Âmbar” é estranho, porque Mino Carta tenta transformar a realidade em ficção, para que a realidade se torne ao olho do leitor ainda mais chocante, os resultados são pífios. Muita gente certamente vai buscar em alguma reportagem ou resenha os nomes verdadeiros por trás dos personagens. Sobretudo jornalistas. O leitor comum tende a se distanciar de uma obra que, tentando ser ficção, não é mais do que um retrato, absolutamente ressentido, da realidade. O que é ficção e o que é fato no livro de Mino Carta? Nada é ficção. Tudo é realidade. Este, o recado do autor. Mas tudo é verdade?
Teria sido mais adequado se, na capa, no lugar da palavrinha “romance”, a editora colocasse memórias. Mino Carta quer evitar processos judiciais? Decerto não — tanto que é duríssimo com a família Civita, Victor, o capo falecido, e, sobretudo, Roberto (que ele chama de Robert). O livro, a rigor, é um ajuste de contas, pela enésima vez — não há uma entrevista na qual Mino Carta não execre Roberto Civita, o “Nero” brasileiro, na acepção do editor da “CartaCapital” —, com os Civita, alguns militares e Armando Falcão.
A respeito de Victor Civita, Mino Carta era até cordial, agora, ele o ataca duramente. Conta de sua sunga minúscula, não apropriada para a idade, e, de leve, aponta uma “suspeita” de homossexualidade. Suspeita, vale frisar. Porque, segundo Mino Carta, o velho Victor era até indiscreto com as mulheres.
No Brasil, há a tendência de o jornalista, por saber escrever corretamente, julgar que deve ser escritor. No caso de Mino Carta, como em outros, fica evidenciado que não basta escrever bem. É preciso ter imaginação literária. As frases curtas lembram, ao longe, a prosa do americano Ernest Hemingway, que aprendeu a escrever copiando manuais de redação de jornal e, segundo o crítico Edmund Wilson, observando a literatura enxuta de Mark Twain. De perto, lembram mesmo jornalismo, especialmente o jornalismo de revista, com um pé no fato e outro na opinião, esta, quase sempre, devorando aquele.
Os puxa-tudo — que adoram elogiar livros de coleguinhas — dizem que se trata de um grande romance, o que é inteiramente falso, do começo ao fim. Como Mino Carta é diretor de redação de uma revista importante, a “CartaCapital, na certa ainda vai aparecer um crítico da estirpe de Antonio Candido garantindo que o autor é um romancista de mão cheia, o Balzac dos trópicos. Felizmente, até agora não apareceu. Roberto Schwarz, um crítico respeitável, teve coragem de garantir que “Estorvo”, de Chico Buarque, é um grande romance. A crítica de Schwarz é de primeira, e diz respeito a um livro inexistente. A obra de Chico Buarque, de terceira.
Há livros de memórias jornalísticas bem melhores do que “O Castelo de Âmbar”. O livro de Mino Carta perde, por exemplo, para as memórias “Minha Razão de Viver”, de Samuel Wainer (o ghost writer é Augusto Nunes), e para a biografia “Chatô — o Rei do Brasil”, de Fernando Morais. Samuel Wainer não se mostra apenas como um grande homem — o responsável pela volta do “velhinho” Getúlio Vargas à política; admite que, para fazer jornal, é preciso uma gota (em alguns casos, um oceano) de cafajestismo e oportunismo. Fernando Morais poderia ter transformado o empresário e jornalista Assis Chateaubriand, o Chatô, num anjo ou demônio. Mas soube escapar ao maniqueísmo, do qual não podemos fugir sempre, e trouxe à luz um Chatô multifacetado: anjo (quando construiu o Masp) e demônio (ao lidar com a vida em geral). As contradições de Chatô foram captadas com mestria. Estão todas, ou quase, no livro editado pela Companhia das Letras. Faço um reparo: o nosso Cidadão Kane (Roberto Marinho era mais fleumático, mas não tinha o tutano de Chatô. Cadê o Masp do homem que construiu o império Globo?) merece uma biografia decente (a escrita por Pedro Bial, jornalista da TV Globo, é mera hagiografia), mas Getúlio Vargas, muito mais complexo, e absolutamente mal explicado pelos historiadores, merece uma biografia tão séria e bem escrita quanto a do velho escroque. Getúlio Vargas está à espera de um biógrafo decente, como Fernando Morais (quando não está apaixonado por Fidel Castro). O jornalista Lira Neto, depois de ter escrito excelentes biografias do presidente Castello Branco, do escritor José Alencar e do Padre Cícero, vai publicar a biografia de Getúlio Vargas, em três volumes, pela Companhia das Letras. O primeiro volume da trilogia sai em 2012.
Enquanto o crítico mais famoso não aparece, os epígonos se põem em evidência com elogios ao Mestre, o homem perfeito. Pena que não tenha sido descoberto pelas religiões (exceto a petista): Mino Carta é o Jesus Cristo da imprensa brasileira. A vestal da hora. Sim, acredite! Nirlando Beirão, na revista “Bravo!” (cada dia mais bonitinha mas, em conteúdo, ordinária), escreveu que Mino Carta é “o último iluminista”. Não é só o fim da picada — é o fim do mundo. Os “ossos” de Diderot e Voltaire, e talvez os de Rousseau, tentaram sair da tumba para surrar, pelas beiradas, o jornalista Nirlando. Isaiah Berlin, o filósofo, convenceu-os, os “ossos”, de que era uma tarefa bastarda e inglória.
Nirlando Beirão certamente nunca leu Balzac, e não apenas o de “Ilusões Perdidas”, ou não sabe o valor de sua obra, pois escreve: “Em Mino Carta, como em Honoré de Balzac, a ficção é o melhor espelho do real”. A frase feita, de efeito, nada diz sobre o autor de “O Castelo de Âmbar”, que, claro, não é o nosso Balzac. Não temos um Balzac. O excelente memorialista Pedro Nava aproxima-se mais de Proust, inclusive na precisão estilística e na imprecisão histórica, ainda que não se distancie totalmente de Balzac.
“O Castelo de Âmbar” não é, claro, um livro péssimo, descartável. Mas não é a nona maravilha da literatura internacional, como o quer Nirlando Beirão. É ideal para jornalistas, sobretudo para aqueles que se interessam por fofocas sobre jornalistas e, às vezes, políticos. Como não é um romance, o leitor pode abrir em qualquer “capítulo”, que funciona como peça independente, e esquecer os outros. Há pouco nexo entre as “partes”. Em Julio Cortázar, que poderia ser citado para efeito de comparação, há sempre “sentido” quando se junta as partes. Porque Cortázar faz literatura, não memórias disfarçadas.
A cabeça de Mino foi um presente de Civita a Falcão
Mino Carta é um jornalista de mérito. Fez as revistas “Quatro Rodas” — embora nunca tenha dirigido um veículo —, “Veja”, “IstoÉ”, “CartaCapital” e o “Jornal da República” (seu único e rotundo fracasso).
O capítulo “Um conto, apenas”, em 44 páginas, registra os conflitos de Mino Carta com a família Civita, de quem se tornou inimigo figadal, perdoando tão-somente Silvana (mulher de Victor Civita, o chefão já falecido) e Richard, este pela franqueza (e talvez por não ter a mesma importância de Roberto).
Em janeiro de 1974, Mino era um prestigiado diretor de redação, um jornalista que falava com ministros, generais e empresários com facilidade. Ganhava um salário excelente, tinha motorista particular, viajava para o exterior com frequência (por conta da Editora Abril). Ao aceitar dirigir a revista “Veja”, deixando o “Jornal da Tarde” (espécie de “JB” de São Paulo, em termos de inventividade jornalística. Hoje, o “JT” é um jornal de segunda categoria, como o “JB”), Mino Carta assinou um protocolo com os Civita. “No dia-a-dia, os Civita não teriam interferências e só poderiam discutir cada edição depois de publicada.” Um caso raríssimo de controle de uma redação pelo editor, o que, hoje, não parece ser mais possível, pois jornalismo não tem mais nenhuma aura romântica — é negócio, como qualquer outro.
Italiano, Victor Civita quis se enturmar com a elite paulista e pediu a Mino Carta que convidasse Ruy Mesquita, do “Jornal da Tarde”-“Estadão”, para um jantar. Ao final, depois de provar várias bebidas servidas pelos novos ricos (ainda que endividados), Ruy Mesquita saiu xingando. “Filhos da puta, americanófilos até a medula, qualquer um sabe, e ficam aí louvando um papa comunista por puro modismo.” Os Civita elogiaram o papa João XXIII — que, como se sabe fora da família Mesquita, nada tinha de comunista. Adolpho Bloch era mais contundente, na versão de Mino Carta: “Em lugar de lhes pronunciar o sobrenome, dizia ‘os cagões’ como se fosse sinônimo. O pai de Mino os via de outra maneira. ‘Este Robert é um dos poucos judeus néscios que conheci na vida’” (ah, quem narra a história é Mercúcio Parla, alter ego de Mino Carta). Pois o “néscio” dirige a principal revista brasileira, com circulação bem superior à da “Época”, “IstoÉ” e “CartaCapital”.
Fazer “Veja”, nos primeiros tempos, foi uma guerra. Na versão direta de seu criador: “A revista ‘Veja’ teve dias e anos difíceis desde o lançamento. Primeiro, porque representava um modelo de publicação desconhecido do chamado grande público. Segundo, porque, para complicar as coisas, Mino Carta e a redação levaram muito tempo para acertar a mão. Terceiro, porque a situação política, que já era péssima, complicou-se ainda mais três meses depois da estreia. Sem contar que o nome, ‘Veja’, imposto pelo ‘chairman’ [Victor Civita], sugeria uma revista ilustrada, quando seu objetivo era ser lida”.
Censura e Millôr
Mas em 1974, 1975, apesar da censura, a “Veja” já era considerada como uma revista “séria” — ela “contava”. Por isso, Armando Falcão, ministro da Justiça do governo de Ernesto Geisel, marcou um encontro com Mino Carta, no Rio de Janeiro. Mino Carta perguntou sobre o fim da censura em “Veja”. Falcão teria dito: “Confirmo, sai logo”. Em nova conversa, em Brasília, Falcão teria assegurado: “Para ‘Veja’ a censura acabou”.
Mino Carta volta à redação, empolgado. E “... manda tirar da gaveta uma reportagem pronta há algum tempo. Conta, em texto substantivo, olímpico, a vida de alguns exilados ilustres cassados em 1964, ocupa duas páginas na primeira edição sem censura, e é ilustrada pela foto do líder esquerdista Leonel Brizola, abraçado a um cordeirinho”. Os militares ficaram irritados.
“Na edição seguinte, que coincide com o décimo aniversário do golpe, a capa exibe um xis de aço, o dez dos romanos, lívido em clima sombrio. ‘Veja’ faz a análise de uma década de ditadura, análise cautelosa, mas crítica”, relata Mino Carta. O diretor responsável de “Veja”, Edgard de Silvio Faria, avisa: “Os homens não gostaram, menos ainda que da reportagem dos exilados”. Outra edição é apreendida nas bancas. Os militares se irritaram com uma charge de Millôr Fernandes. “Cena de masmorra: escombro de ser humano pendurado na parede como Cristo na cruz, de fresta na porta da cela sai um balão e nele se lê: ‘Nada consta’.”
A censura volta à redação. O general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel, vocifera: “Vocês saíram da linha, colheram o que semearam”.
Num encontro com Golbery, do qual participaram Mino Carta e Roberto Civita, este pergunta: “Gostaria de perguntar ao senhor ministro se tem alguma objeção em relação a Millôr Fernandes”. A resposta seca de Golbery: “Senhor Civita, não estamos pedindo a cabeça de ninguém e muito menos eu a pediria”. Roberto Civita havia ido a Brasília para servir a cabeça de Millôr, mas Golbery não quis “comê-la”. É a versão de Mino Carta.
Ouvido pela extinta revista “República” — que deu capa para Mino Carta —, a respeito das várias críticas, Roberto Civita diz que o jornalista delira. Sua defesa: “Só posso lamentar que, à medida que os anos avançam, a memória de Mino vai enfraquecendo e as suas fantasias, aumentando. O que ele diz, além de ridículo e ofensivo, não tem nenhuma relação com a verdade e muito menos com a honorabilidade da família Civita e com a forma elegante com que ele sempre foi tratado”. O diretor de redação da “Folha de S. Paulo”, Otavio Frias Filho, Otavinho, que Mino Carta chama de “besta, um ser subdoloso e eventualmente mau”, também ataca: “Não tenho respeito moral nem intelectual por Mino Carta, que considero uma mediocridade emplumada. A obsessão desse sujeito comigo é assunto para psiquiatras”. Mino Carta costuma escrever que Claudio Abramo fez a revolução que tornou a “Folha de S. Paulo” o maior jornal do Brasil, pelo menos em circulação, mas que Otavinho Frias ficou com os louros.
Crítico demais
As empresas jornalísticas, como quaisquer outras, são construídas, em geral, com base em recursos públicos. Foi o caso do jornal “Última Hora”, de Samuel Wainer, e da Arisco. A empresa goiana, depois vendida para uma multinacional (os ex-donos da extinta Arisco criaram o grupo Hypermarcas, uma potência brasileira), foi alavancada pelo incentivo fiscal Fomentar (o novo nome é Produzir). Até o projeto, de 1984, é seu, admitiu João Alves de Queiroz Júnior, em entrevista à revista “Exame”.
Com o Grupo Abril não foi e não é diferente. Relata Mino Carta: “Para construir o avantajado edifício à beira do rio [Tietê] e montar uma gráfica de porte alentado, a Abril contraíra dívidas vultosas junto a instituições financeiras estrangeiras. Algo em torno de 50 milhões de dólares, moeda dos EUA, em curso no império. Uma fortuna. Agora os Civita pretendiam consolidar a dívida no país e para tanto solicitavam um empréstimo — equivalente a 50 milhões de dólares em moeda nacional — da Caixa Econômica Federal, presidida por Karlos Rieschbieter”. (Depois, parte da imprensa ainda critica o empréstimo, que não saiu, para o Pão de Açúcar tentar fundir-se ao Carrefour.)
Se o pleito era legítimo, como reconhece Mino Carta, havia o aspecto político. “A solicitação partia de uma empresa de comunicação que publicava uma revista de informação submetida à censura do regime.”
Ao saber do empréstimo, o ministro Armando Falcão estrilou: “Epa, que história é essa? Como é possível ajudar a editora desta ‘Veja’, inimiga da gente?”
O diretor da Abril em Brasília, Pompeu de Souza, mandou uma carta aterradora para Edgard de Faria: “Este empréstimo não vai sair nunca”, teria dito Falcão ao jornalista. Falcão teria acrescentado: “Que esperam para se livrar do Mino? Mino é codinome, ele se chama mesmo é Demetrio”. De fato, Demetrio é o nome de Mino. O apelido era Mitino. Demetrio virou Mino aos 15 anos.
Tempos depois, a crise recrudesceu. Os militares pediram a cabeça de Plínio Marcos, que assinava uma coluna na “Veja”. Escreve Mino Carta: “A censura está para sair de ‘Veja’, garante Vici [Victor Civita], a demissão de Plínio Marcos é o que falta para encerrar o assunto”.
Mino Carta não quis demitir Plínio Marcos e acabou afastado. “E foi proibido seu acesso ao Edifício Abril.”
Atendendo proposta da “diplomata” Dorrit Harazim, Mino Carta aceitou um encontro com Roberto Civita. Este contou: “Falcão comentou que você [Mino] é crítico demais em relação ao governo e, em geral, muito mal-humorado”. O que mais irritou Mino Carta é que Roberto Civita concordou com as críticas de Falcão. Por isso, gritou: “Saia, já. Um, dois...” O jornalista relata que, ao pronunciar três, “ouviu a porta do elevador que se fechava”.
Tentando checar “tudo”, Mino Carta procurou o ministro Armando Falcão, que teria esclarecido: “Elementar, elementar: eu recebia aqui quatro diretores da Abril, Victor Civita, Robert Civita, Edgard de Silvio Faria e Pompeu de Souza. Os quatro repetiram, dois anos a fio, que a ‘Veja’ estava contra a gente por sua causa. Então, pergunto: que teria de fazer? Meu caro, não tinha alternativa”. Por que Mino Carta acredita mais na versão de Armando Falcão? Talvez seja mais conveniente.
Mino Carta saiu da revista e, “dois meses após, a censura acabou em ‘Veja’ e a Abril recebeu o empréstimo”.
O “repórter” Mino Carta faz uma denúncia grave, que, porém, ele próprio não procurou apurar: “Havia o zunzum de que Edgard [de Silvio Faria] tinha ligações com figuras da repressão”. Talvez para se livrar de processo, Mino Carta ressalva: “Mino, no entanto, não dispunha de provas a respeito e não se contentava com suspeitas”. Mas, afinal, cadê o Mino Carta repórter?
Os tempos mudaram. A “Veja” se tornou mais crítica em relação ao poder. A “CartaCapital”, sob controle de Mino Carta, se tornou uma espécie de porta-voz oficiosa dos governos do PT. Mino Carta, aos 78 anos, ficou parecido com Roberto Civita — ou Roberto Civita ficou mais parecido com o Mino Carta do passado? A resposta é do leitor.