Virginia não gostava da crítica acadêmica, que achava estéril. Talvez fosse uma vingança por não ter obtido educação universitária. Talvez fosse pela percepção de que, como denuncia Gore Vidal, muitos teóricos da literatura querem substituir a literatura pela teoria literária

Em 28 de março de 2012, fez 71 anos que a escritora inglesa Virginia Woolf se matou. Virginia, que hoje tende a ser comparada (desfavoravelmente) a James Joyce, que ela considerava (invejosamente) um operário autodidata, morreu aos 59 anos, jogando-se no Rio Ouse, em 1941.
A obra de Virginia permanece gerando polêmica. Para alguns, ainda é inovadora. Para outros, teria envelhecido. A revolução de Virginia estaria obscurecida pela revolução de Joyce. Talvez o mais justo seja não comparar os dois autores, percebendo, antes, que há diferenças, apesar de estarem próximos (literalmente), entre eles.
Sobre sua vida, é possível saber alguma ou muita coisa, principalmente depois da sensível e abrangente biografia de Quentin Bell. Infelizmente, a autobiografia de Leonard Woolf ainda não foi traduzida para o português. Leonard foi a pessoa que mais entendeu Virginia. É provável que ela tenha escrito a maioria de suas obras porque teve o apoio firme do marido e amigo. Leonard sacrificou-se pelo talento de Virginia. Trata-se do sacrifício do menor talento pela afirmação do maior talento. O casamento sequer lhe proporcionou prazer sexual.
Virginia Woolf — Uma Biografia (1882-1941), do escritor Quentin Bell, sobrinho de Virginia e filho de Vanessa e Clive Bell, é um livro belíssimo e traz fotografias excelentes. O meu texto é uma pálida síntese da esplêndida obra de Quentin Bell — publicada no Brasil pela Editora Guanabara, com tradução de Lya Luft. O único senão é a revisão, catastrófica, como de hábito no "nosso" doce Bananão.
Para sorte dos leitores, a biografia, embora esgotada, pode ser encontrada em sebos. Um detalhe relevante para os preguiçosos leitores brasileiros, filhos diletos da televisão: a biografia tem 614 páginas. É um cartapácio. Um detalhe convidativo: o texto de Quentin Bell é agradável e não tem ranços acadêmicos.

Leslie Stephen , o pai
Como disse, meu texto é uma pálida síntese do livro de Quentin Bell. Há histórias interessantíssimas sobre Virginia, que tinha o apelido de "Cabrita", mas, se fosse contar todas, precisaria de mil páginas e o leitor não leria o livro. Registrarei mais o "crescimento" efetivo e literário de Virginia.
Os familiares de Virginia, por parte de pai, eram todos escritores. Eram da alta classe média inglesa. Virginia Stephen nasceu no dia 25 de Janeiro de 1882. Só aprendeu a falar depois dos 3 anos. Aos 6 anos, falava bem e contava estórias deliciosas. Era uma espécie de Hemingway de saias. Mas nada sacava de aritmética.
Ainda jovenzinha, foi bolinada pelo meio-irmão George. Pode ter sido a causa de sua permanente frigidez sexual. Antes dos 13 anos, depois de várias leituras, buscando sem conseguir um estilo próprio, começou a copiar Nathaniel Hawthorne. Aos 16 anos, apaixona-se por uma mulher, Madge. Nada de sexo. Puro amor. Afeto. Paixão adolescente.
Virginia era uma leitora compulsiva. Queria compensar, em tempo recorde, o fato de não ter educação formal, universitária. Os irmãos Thoby e Adrian estudaram em Cambridge. Ela não pôde estudar lá. Ficou ressentida a vida inteira. A saída foi ler bastante, aprender sozinha ou com o pai, Leslie Stephen, um homem sábio mas de personalidade frágil e difícil.
Depois da morte do pai, em 1904, Virginia tenta se matar, pulando de uma janela, mas não consegue. A janela era baixa e ela se machucou muito pouco. Mas a alma estava profundamente ferida. A garota estava tão maluca que ouvia os pássaros cantando em grego. E já estava apaixonada por outra mulher — Violet Dickinson. De novo, nada de sexo. É o que diz o informadíssimo Quentin Bell. Seu sobrinho, vale ressaltar.

Julia Stephen, a mãe
Entretanto, apesar de parente, Quentin aparentemente não esconde fatos, o que pode ser comprovado lendo outras biografias de Virginia. O autor é franco e claro, embora Lya Luft, a tradutora, procure termos mais suaves para falar do "lado" lésbico de Virginia e do homossexualismo dos amigos da escritora. Safismo e sodomita são palavras que estão registradas nos dicionários brasileiros, mas não no vocabulário do nosso leitor médio. No lugar de sodomita, para ficar mais claro, a tradutora poderia ter ousado e escrito "viado" (com i) ou, pelo menos, "homossexual". Mas isso não importa tanto. São detalhes de nenhuma importância.
Em 1904, por interferência de Violet, Virgínia começa a escrever críticas (não assinadas) para The Guardian. Em 1905, Thoby começa as noites de quinta-feira, no famoso bairro de Bloomsbury, com a presença de Saxon Sydney-Tuner, Leonard Woolf, Lytton Strachey (irmão do grande tradutor de Freud, James Strachey), Clive Bell e Desmond MacCarthy. Jack Pollock, E. M. Forster, Bertrand Russell e John Maynard Keynes também participavam da "farra" intelectual.
Henry James, amigo do pai de Virginia, não gostou do grupo de Bloomsbury, que achava de baixo nível. Rebelde, o grupo usava roupas esdrúxulas e falava palavrão. Vanessa, pintora, mãe de Quentin Bell, também participava das reuniões e era adepta do "sexo livre". Ela própria era chifrada por Clive Bell e chifrava o marido. Nenhum dos dois, porém, gostava das chifradas. O liberalismo na prática é uma piada.
As reuniões de Bloomsbury ajudaram imensamente na formação da "inculta" Virginia. Os participantes eram intelectuais, alguns em formação e, outros, com alto preparo. Ela absorvia, "antenada" e "babando", tudo que eles falavam ou sugeriam.
Mas a morte de Thoby, o irmão e amigo adoradíssimo, bagunça a família Stephen, que nunca fora muito ajustada. Vanessa, desesperada, se casa com o garanhão come-tudo Clive Bell. Virginia não gostou do casamento. No início. Ela e Adrian, o mais moço dos irmãos e o mais atrapalhado, vão morar juntos.
Os amigos e parentes declaram: "Virginia precisa casar". Queriam arrumar uma pessoa para cuidar da "incuidável" Virginia. Irritada, Virginia escreveu à amiga Violet: "Eu queria que todo mundo não me ficasse repetindo que devo casar. Será uma irrupção da rude natureza humana? Eu acho repulsivo". Apesar de sua ira, os amigos e parentes continuaram insistindo para que ela se casasse.

Julia e Virginia
Entre 1907 e 1908, Virginia começa a escrever Melymbrosia, mais tarde publicado como The Voyage Out (este primeiro romance de Virginia foi editado no Brasil sob o título de A Viagem). Exigente, Virginia queimou sete versões de The Voyage Out. Ela não publicou ficção até os 33 anos.
"Seu laconismo literário era em parte resultado de timidez; ainda ficava aterrorizada com o mundo, aterrorizada de se expor. Mas unia-se a isso outra emoção, mais nobre — um alto conceito de seriedade de sua própria profissão. Para produzir algo que atingisse seus critérios particulares, era necessário ler vorazmente, escrever e reescrever continuamente, e, sem dúvida, se não estava escrevendo na hora, agitar as idéias que expressava em sua mente", nota Quentin Bell.
No plano afetivo, a vida de Virginia continuava difícil. Lytton Strachey quis se casar com ela, mas não deu certo. Lytton era viadíssimo da silva. Outro amigo de Virginia, o competente e célebre economista John Maynard Keynes, embora tenha se casado com uma bailarina, também era sodomita (palavra bastante usada por Quentin Bell). Keynes morou na casa de Virginia e Adrian.
Em 1912, Leonard Woolf e Virginia se casam. Leonard se apaixonou por Virginia. Doce e perdidamente. O casamento foi um grande "negócio" para Virginia. A união com Leonard aumentou o seu equilíbrio emocional e a sua segurança como escritora. O curioso é que a família Stephen não avisou Leonard dos problemas de saúde de Virginia. Tudo indica que a família procurou esconder que Virginia era "meio louca" com medo que Leonard desistisse do casamento. O casamento não agradou Clive Bell. Clive andou tirando umas casquinhas de Virginia. Mas sossegue: o vigoroso marido de Vanessa não conseguiu papar Virginia. Só tirou casquinhas. Virginia, diga-se, gostava do atrevimento de Clive.
Leonard adorava Virginia, sua capacidade intelectual, e não se preocupava com a frigidez sexual dela. Quentin Bell, um biógrafo às vezes discreto, sugere que Virginia "considerava o sexo não tanto com horror, mas com incompreensão; havia em sua personalidade e em sua arte uma qualidade estranhamente etérea, e, quando as necessidades literárias a compeliam a considerar o prazer sexual, ela se afastava ou nos revelava algo tão distante de bolinas e empolgações quanto a chama de uma vela é distante de seu sebo".

Talland House, a casa da família
Virginia conclui The Voyage Out e o entrega à editora. Doente, pensa que a libertação (a cura) está no suicídio. Toma 6,5 gramas de veronal e quase morre. Quentin Bell registra que até 1913, data da tentativa de suicídio, Freud era pouco conhecido na Inglaterra. "Ernest Jones começou a praticar em Londres em 1913", informa Quentin. Virginia não se interessava muito por Freud. Mas Leonard achava que o conhecimento das idéias de Freud poderia ser útil no seu tratamento.
The Voyage Out foi publicado em março de 1915. Os amigos de Virginia e a crítica gostaram. Edward Morgan Forster (autor de Passagem Para a Índi", mais conhecido no Brasil pelo bom filme de David Lean), que também era gay renitente, elogiou o livro de Virginia no Daily News: "Eis finalmente um livro que chega ao mesmo patamar de O Morro dos Ventos Uivantes, embora por um caminho diferente". A critica era esperada ansiosamente por Virginia. Queria ver se seu talento era confirmado.
"Virginia", escreve Quentin Bell, "estava sempre imaginando que, para o mundo exterior, [seus romances] pudessem parecer simplesmente doidos ou, pior ainda, fossem realmente doidos, seu horror à zombaria rude do mundo continha o medo mais profundo de que sua arte, e por isso ela mesma, fosse uma espécie de impostura, um sonho imbecil sem valor para os outros. Por isso, para ela, uma nota favorável valia mais que o mero elogio; era uma espécie de certificado de sua sanidade mental".
"O problema", continua Quentin, "deve estar presente quando pensamos em sua extrema sensibilidade à crítica, uma sensibilidade que podemos considerar mórbida e que realmente, em certo sentido, era mórbida, pois nascia de um estado enfermiço. Os ataques e acoites da crítica, que seriam facilmente enfrentados por um organismo mais robusto, no caso dela podiam reabrir feridas que jamais se tinham curado inteiramente e que nunca deixariam ser muitíssimo delicadas".
Quentin Bell nota que a saúde de Virginia melhorou em 1915 por causa das criticas favoráveis. Virginia, temendo a crítica, escreveu: "Imagine acordar e descobrir que se é uma fraude. Esse horror era parte da minha loucura".
Em 1917, um tanto ranzinza mas admirada, Virginia escreveu à adorada e protetora irmã Vanessa: "Tive um breve encontro com Katherine Mansfield; que me parece um caráter desagradável mas enérgico & absolutamente inescrupuloso".
Quentin Bell explica bem: "Elas [Virginia e Mansfield] sempre tendiam a discordar, mas na verdade nunca discordariam. Unidas pela devoção à literatura e divididas na sua rivalidade como escritoras, achavam uma à outra sobremodo atraentes, mas muito irritantes. Ou pelo menos eram esses os sentimentos de Virginia. Ela admirava Mansfield; também estava fascinada por aquele lado da vida de Katherine que ficava além da sua própria capacidade emocional".
"Katherine", revela Quentin, "andara pelo mundo, ficara magoada; dera vazão a todos os instintos da fêmea, dormira com todo tipo de homens; tornara-se objeto de admiração — e piedade. Era interessante, vulnerável, talentosa, encantadora. Mas também se vestia e se portava como uma prostituta. Penso que Katherine Mansfield retribuía a admiração de Virginia e também sua animosidade. Virginia com certeza apreciava bastante o talento de Katherine, a ponto de querer editar um de seus contos".
É provável que Virginia tenha lançado um olhar masculino em Katherine Mansfield. O homem em geral deprecia a mulher inteligente e diferente, mas também a cobiça sexualmente. Outra coisa: Virginia não gostava de elogiar escritores vivos. Só deu importância a D.H. Lawrence, o autor de Mulheres Apaixonadas, depois que ele morreu. Os vivos eram seus concorrentes.
Junto com Leonard Woolf, Virginia foi dona da Hogarth Press, que editou grandes escritores e poetas, como Katherine Mansfield e T.S. Eliot, além do psicanalista Freud. Quentin Bell e os outros biógrafos revelam algo curioso: Virginia escrevia um romance vigoroso (como As Ondas) e, em seguida, um romance mais leve e fácil (como Os Anos). Parece que tal artifício visava tranqüilizar os seus nervos e, ao mesmo tempo, testar novos caminhos para o romance. "O romance peso-pesado é sucedido por um livro peso-pluma — que ela chamava 'uma piada'", só que Quentin Bell não acha que Noite e Dia seja uma piada. Não acha o livro bom. Mas não concorda que seja totalmente ruim.

Virginia e Adrian Stephen 1891
O manuscrito de Ulysses, de James Joyce, foi oferecido à editora de Virginia, que não pôde ou não quis publicá-lo. Quentin Bell tenta explicar: "Era uma obra que Virginia não podia rejeitar nem aceitar. O poder e a sutileza da obra eram evidentes o bastante para despertar a admiração dela e, sem dúvida, inveja. Parecia-lhe ter uma espécie de beleza, mas também um brilho rude, arguto, de sala de fumantes. Joyce usava instrumentos parecidos com os dela, e isso era doloroso, pois era como se a pena, sua própria pena, tivesse sido arrancada de suas mãos e alguém rabiscasse com ela a palavra fodano assento de um vaso sanitário".
Virginia "também sentia", segundo Quentin, "que Joyce escrevia para um pequeno grupo, e, quando se refere a ele, escreve 'essa gente' — como se o classificasse tal qual Ezra Pound e não sei que outras figuras do 'submundo'. A reação dela talvez seja significativa; a rudeza gratuita e impudente de Joyce fazia-a sentir-se, súbito, desesperadamente 'uma dama'. Mesmo assim foi perspicaz o bastante para ver que era algo digno de ser publicado; era claro, também, que estava absolutamente além da capacidade técnica da Hogarth Press". Para mim, era o lado mundano de Joyce que não agradava Virginia. Ao contrário de Joyce e de Proust, não sacava muito do lado "sujo" da vida.
O leitor pode ler mais sobre o assunto na admirável biografia de James Joyce escrita pelo americano Richard Ellmann. "Os Woolfs disseram-lhe (à emissária de Joyce) que não poderiam imprimir (Ulysses) porque levaria dois anos na sua impressora manual, embora dissessem que estavam muito interessados nos quatro primeiros episódios que leram. Na verdade parecem tê-lo considerado 'vulgar', embora Katherine Mansfield, que deu uma olhada no manuscrito certo dia enquanto os visitara, tenha começado ridicularizando-o e depois de repente tenha dito: 'Mas há qualquer coisa nisso: uma cena que deveria figurar, suponho, na história da literatura'."
A história de Virginia Woolf escritora é tão interessante como a de Virginia Woolf editora. T.S. Eliot foi amigo de Virginia e a Hogarth Press editou seus primeiros poemas e o mais famoso, A Terra Estéri". Virginia tentou tirar T.S. Eliot do emprego em um banco. Mas não conseguiu. Mais tarde, ficou irada porque Eliot se tornou editor de uma casa rival, The Criterion.
Em 1919, Virginia publica Noite e Dia. A crítica não gostou. E.M. Forster (1879-1970) e Katherine Mansfield (1888-1923) odiaram. Mas Forster, amigo, foi elegante e discreto. Disse que o livro não era melhor que The Voyage Out. (Forster mais tarde ficou chateado com algumas críticas ferinas de Virginia.) Mansfield foi dura: Noite e Dia era "uma mentira da alma. Falando sobre esnobismo intelectual — o livro dela fede a isso. (Mas não posso dizê-lo.) É muito longo e cansativo". Virginia, que não sabia assimilar criticas, ficou abalada.
Mas Virginia se curava dos petardos da crítica de um modo extraordinário: no lugar de ficar bloqueada, produzia mais, e melhor. Se o romance anterior fosse considerado ruim, até pelos amigos que adorava, como Forster, procurava escrever outro melhor, mais inventivo. Foi o que o ocorreu depois de Noite e Dia. Em 1922, publicou pela Hogarth Press O Quarto de Jacob. T.S. Eliot festejou: "Você se libertou de qualquer compromisso com o romance tradicional e seu talento original. Parece-me que construiu uma ponte sobre certa lacuna que existia entre seus outros romances e a prosa experimental de Monday or tuesday, conseguindo um sucesso notável".

Duckworth group, 1892
O Quarto de Jacob, para Quentin Bell, marca o inicio de sua maturidade e fama. Em 1925 Virginia publicou Mrs. Dalloway, que agradou à crítica. Forster elogiou Mrs. Dolloway. Thomas Hardy leu The Commom Reader com prazer. Virginia ficou maravilhada.
Entre 1925 e 1928, Virginia lança Passeio ao Farol e concebe As Ondas. Nesse período ela conhece Vita, a sua grande paixão. Vita era lésbica, mas casada, como Virginia. Quentin Bell é discreto e diz pouco sobre o assunto. Tudo indica que as duas não chegaram a ter um caso no sentido moderníssimo. Vita escreveu para Virginia: Você gosta mais das pessoas pelo cérebro do que pelo coração. Fosse hoje, o texto de Vita teria acréscimo: Você gosta mais das pessoas pelo cérebro do que pelo coração e pelo corpo.
Na verdade, Virginia era de uma carência extremada e todo mundo que lhe dava atenção recebia alguma esperança, de sexo ou afeto. Só que, afeto, tudo bem, sexo, nada. Pelo menos, a se acreditar na versão do sobrinho.
Quem leu Orlando sabe que Vita é Orlando. Para Quentin Bell, Orlando é o único dos romances de Virginia que se aproxima da emoção sexual, ou antes, homossexual; pois, enquanto o herói/heroína sofre uma transformação física, sendo no começo um esplêndido jovem e depois uma linda dama, a metamorfose psicológica é muito menos completa. O livro vendeu bem. Mas Orlando, sabia Virginia, não era um grande livro. Julgamento que os leitores de hoje não partilham, sobretudo por que as questões sexuais se tornaram mais importantes, na avaliação do romance, do que as literárias.
Em 1931, Virginia, a mulher que adorava charutos, publica As Ondas, para os críticos, sua obra-prima. Leonard Woolf, que sempre opinava, criticamente, sobre os livros de Virginia, disse: O livro é uma obra-prima, a melhor das suas obras. Ela adorou. Leonard era suspeito, até por que conhecia a fragilidade emocional de Virginia, mas era, ao mesmo tempo, prudente, justo e rigoroso.
O indefectível E. M. Forster escreveu que encontrara um clássico. A opinião dele era muito respeitada por Virginia. Um tinha inveja do outro. Mas, éticos, respeitavam as diferenças entre suas obras. Virginia gostava de conversar sobre homossexualismo com Forster, que adorava rapazes.
Virginia não gostava da crítica acadêmica, que achava estéril. Talvez fosse uma vingança por não ter obtido educação universitária. Talvez fosse pela percepção de que, como denuncia Gore Vidal, muitos teóricos da literatura querem substituir a literatura pela teoria literária.
Quentin Bell registra um aspecto curioso: Virginia adorava mexericos, fofoca, e dizia o que pensava, não importando as conseqüências. Outra coisa curiosa: como Joyce e outras, ela aproveitou a história de sua família e as relações com os amigos nos seus romances. Vida e obra, estetizadas, estão ligadíssimas e indissociáveis em Virginia. Mas é óbvio que a escritora não escreve biografias literárias e, claro, tinha uma imaginação poderosa.
Na década de 30, alguns críticos atacam Virginia, deixando-a desequilibrada emocionalmente. O mais virulento, Wyndham Lewis, escreve: Ela é sobremodo insignificante. Ninguém mais a leva a sério. Os críticos de esquerda não atacavam Virginia. Stephen Spender e Cecil Day-Lewis (pai de Daniel Day-Lewis, ator de A Insustentável Leveza do Ser e Meu Pé Esquerdo) gostavam de sua obra.
Em 1937, Virgínia pública Os Anos e sente a loucura chegando. Leonard achou o livro ruim, mas ficou calado, ou melhor, temendo que Virginia se matasse, mentiu: Acho que é extraordinariamente bom. Virginia sabia que o livro era ruim. O economista Keynes gostou do livro, de forma irrestrita. Em 1939, Virginia foi ver Freud, que estava exilado em Londres. Ele teria impressionado Virginia como um homem alerta. Mas torto encarquilhado muito velho e a velha chama agora bruxuleante. Freud disse a Virginia e Leonard que seria necessária uma geração para eliminar aquele veneno [o nazismo de Hitler].

Wyndham Lewis, crítico mordaz de Virginia, escreveu:
Ela é sobremodo insignificante. Ninguém mais a leva a sério
Por causa da Segunda Guerra Mundial, Leonard e Virginia Woolf chegaram a pensar em suicídio. Obtiveram até uma dose letal de morfina. Mas, com Londres bombardeada, Virginia deixou de falar em suicídio. Numa carta a Ethel Smyth, escreveu: ... o que tocou e na verdade feriu o meu coração em Londres [durante os bombardeios dos nazistas] foi aquela velha mulher, suja de fuligem nos aposentos dos fundos, preparando-se, depois de um ataque aéreo, para enfrentar o próximo... E também a paixão da minha vida, a cidade de Londres — ver Londres em escombros, isso também atingiu meu coração.
No inicio de 1941, Virginia estava desesperada, louca. Mesmo assim tentou convencer a médica Octavia Wilberforce, uma amiga, de que não estava doente mentalmente. Mas confessou partes de seus medos. Medos de que o passado voltaria, de que nunca mais conseguiria escrever.
É triste e pungente como Quentin Bell fala do fim de sua tia escritora: Na manhã de sexta-feira, 28 de março, um dia claro, luminoso e frio, Virginia foi como de costume ao seu estúdio no jardim. Lá, escreveu duas cartas, uma para Leonard e outra para Vanessa — as duas pessoas que mais amava. Nas duas cartas explicava que vinha ouvindo vozes e acreditava que nunca mais ficaria boa; não podia continuar estragando a vida de Leonard. Ela colocou o bilhete sobre a lareira da sala de estar, e cerca de 11h30 esgueirou-se para fora, levando sua bengala de passeio; e atravessou os prados até o rio. Leonard acreditava que ela já havia feito uma tentativa para se afogar: assim, teria aprendido com o fracasso, e estava decidida a não falhar de novo. Deixando a bengala na margem, ela esforçou-se para pôr uma grande pedra no bolso do casaco. Depois encaminhou-se para a morte, 'a única experiência', dissera um dia a Vita, 'que nunca descreverei'.
Última carta a Leonard Woolf
Querido,
Tenho certeza de que estou enlouquecendo de novo. Sinto que não podemos passar por outra daquelas terríveis fases. E desta vez não ficarei curada. Começo a ouvir vozes, e não posso me concentrar. Assim, estou fazendo o que me parece melhor. Você me deu a maior felicidade possível. Não creio que duas pessoas pudessem ser mais felizes até chegar esta doença terrível. Não consigo mais lutar. Sei que estou estragando a sua vida e que sem mim você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Está vendo, nem consigo mais escrever adequadamente.
Não consigo ler. O que quero dizer é que devo a você toda a felicidade da minha vida. Você foi absolutamente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isso — e todo mundo sabe. Se alguém pudesse me salvar, teria sido você. Perdi tudo, menos a certeza da sua bondade. Não posso mais continuar estragando sua vida.
Não creio que duas pessoas tenham sido mais felizes do que nós fomos.
Para Virginia, as escritoras devem ter seu próprio teto
O leitor brasileiro tem muita sorte: os principais livros de Virginia Woolf forma publicados no Brasil em traduções esmeradas. A Nova Fronteira já publicou vários livros, todos bem cuidados. Orlando foi traduzido pela poeta Cecília Meireles; Mrs. Dalloway, por Mario Quintana; O Quarto de Jacob, Entre Atos e As Ondas, por Lya Luft; Noite e Dia, por Raul de Sá Barbosa; Passeio ao Farol, por Luiza Lobo; e Um Teto Todo Seu, por Vera Ribeiro. A mesma editora publicou Os Anos e Uma Casa Assombrada. A editora Companhia das Letras publicou Os Diários. É uma seleção dos registros pessoais da escritora.
A melhor biografia de Virginia foi escrita por Quentin Bell. Outra biografia, complementar e mais sintética, é Virginia Woolf (Jorge Zahar Editor, coleção Vidas Literárias, tradução de Isabel do Prado), de John Lehmann. O autor trabalhou na Hogarth Press com Virginia e Leonard Woolf. Contém excelentes fotografias.
Aspectos do Romance (Editora Globo, 1974), de E. M. Forster, traz ricas informações sobre Virginia e outros escritores. O livro foi relançado no Brasil recentemente, com nova tradução. Trata-se de livro de um escritor importante escrevendo sobre o ofício literário.
O Mundo Moderno — Dez Grandes Escritores (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto), de Malcolm Bradbury, tem um capítulo, muito bom, sobre Virginia.
Língua ferina
John Lehmann, como Quentin Bell, tem a mania de revelar quem é quem nos livros de Virginia Woolf. O Percival de As Ondas, por exemplo, teria sido inspirado em Thoby, um dos irmãos de Virginia. O leitor que não se importa com biografia pode achar isso uma chatice. E, afinal, ele nem sabe quem foi Thoby. Mas é interessante saber que o pai de Virginia tinha relações de amizade com Henry James e Oliver Wendell Holmes e que ela mesma recebia em sua casa o escritor e político Winston Churchill.
Lehmann, reverberando Quentin Bell, conta que Virginia gostava de conversas animadas e amistosas, repletas de piadas, e tinha uma curiosidade intensa a respeito da vida das pessoas com quem se encontrava. Ainda assim durante toda sua vida teve língua ferina — e pena ferina, também, o que muitas vezes apareceria em suas cartas e em seu diário.
Quentin Bell, um biografo de idéias arejadas, fala pouco do chamado fluxo de consciência, mas Lehmann deita e rola sobre o assunto.
Escreve Lehmann: Enquanto o impressionismo de O Quarto de Jacob reduzira suas personagens a visões repentinas, impressões de sobras, em Mrs. Dalloway, usando o 'fluxo de consciência', ela [Virginia] as constrói com pessoas reais, com uma habilidade espantosa. Cada uma das principais personagens é vista interiormente através de seus pensamentos individuais, assim como se refere nos pensamentos das outras; pensamentos, lembranças, juízos que se estendem por sobre o passado e até o presente, de modo que no fim tem-se a impressão de conhecê-las intimamente, em toda a significação de suas vidas, tanto quanto nas suas aparências exteriores e suas excentricidades de comportamento.
Passeio ao Farol é visto por Lehmann como o mais visionário e formalmente perfeito dos romances-poemas de Virginia. Seria uma nova espécie de poema sobre o sentido e o mistério da vida e das relações humanas, que explora os movimentos secretos da mente e o papel e o poder do artista criador. No lugar de fluxo de consciência, Lehmann prefere a expressão impressionismo interior.
Vida total
As Ondas, a obra-prima de Virginia, no entender de muitos críticos, era, na opinião da própria escritora, uma tentativa completamente nova de se fazer literatura. Pode-se dizer, argumenta Lehmann, que seu objetivo era dar um quadro da vida total, desde o amanhecer da primeira sensação à ultima; um quadro de seus sonhos, ambições, aspirações, realizações e fracassos, até as decepções finais, acompanhadas, talvez, pela aceitação ou alegra descoberta da sabedoria. O que ela nos oferece, como jamais o fizera antes, é a vida da alma, eliminando tudo que pudesse obstar ou obscurecer essa visão. A estrutura do livro é inteiramente formal, e a narrativa totalmente interiorizada.
Malcolm Bradburv nota que o método de Virginia Woolf, a narrativa da consciência, deve alguma coisa a James Joyce, mas não é idêntico. Na obra da romancista inglesa, os ritmos da consciência são essencialmente os da visão de criação estática da autora. Há um outro aspecto: a forte consciência de um mundo alterado pela própria modernidade. Bradbury cita E. M. Forster, que era amigo de Virginia, para tentar entender a obra dela.
Disse Forster: Ela está sempre debaixo de sua árvore encantada, esticando o braço e recolhendo pedacinhos de fluxo da vida cotidiana que passam por ela, e é com esses pedacinhos que constrói seus romances. Para Forster, os livros de Virginia nunca terminaram, sempre começavam com poesia e chegavam ao lirismo de modo demasiadamente imediato.
Leonard Woolf, mais conhecido como marido de Virginia Woolf (até o sobrenome Woolf, de Leonard, ficou conhecido por causa de Virginia), era um escritor talentoso e socialista mas não revolucionário. Desconfiava das ortodoxias. Virginia acompanhou Leonard em algumas reuniões e achava a política tediosa, mas deixou alguns escritos feministas importantes. Prefiro dizer que os textos de Virginia são para além do feminismo. São humanos, isto é, não pensam só nas mulheres.
Dinheiro e ficção
Um Teto Todo Seu é um ensaio ressentido mas luminoso. Virginia Woolf defende a seguinte tese nesse livro: A mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu se pretende mesmo escrever ficção (página 8). Para Virginia, ter dinheiro era mais importante que votar. Ela mostra que a produção literária das mulheres sempre foi menor porque elas recebiam uma educação de segunda categoria, não tinham um teto (um quarto) todo seu. Mesmo no século 19, há o caso de escritoras que se escondiam atrás de nomes de homens (Currer Bell, George Eliot e George Sand).
Mas o que acho mais interessante no livrinho (149 páginas) é que Virginia admite que o ressentimento prejudicou boas obras, como Jane Eyre, de Charlotte Brontë (que usava o pseudônimo masculino de Currer Bell). Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, teria escapado do ressentimento. Não deixa de ser curioso que Virginia aconselhasse as escritoras a colocarem o ressentimento de lado, embora ela própria fosse profundamente ressentida com os homens.
O bom escritor, na opinião de Virginia, deve sacar que há dois sexos na mente. Ela diz que a mente andrógina é ressoante e porosa. O livro Feminismo e Arte — Um Estudo Sobre Virginia Woolf (Interlivros, 1975, tradução de Fernando Cabral), de Herbert Mander, aprofunda e explica as idéias feministas ou pós-feministas de Virginia Woolf. Mas o importante mesmo é ler a fúria de Virginia. O leitor pode discordar das idéias, mas os argumentos da escritora são sempre instigantes.
Virginia Woolf
25/01/1822 - Londres - Inglaterra
28/03/1941 - Rodmell - Inglaterra
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