Garrafadas, arruda e alecrim
Muito antes daquele filme“Forrest Gunp” com o brilhante ator Tom Hanks já se sabia que o mundo é, de fato, dos imbecis. Ocupam a terra de cabo a rabo.
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Pequeno e jocoso tratado do espiritismo
Nunca me deixei impressionar pelo fato de que a zona boêmia, tanto ou mais que o engenho de açúcar, (em seu moer e coar como canas colônias de vidas escravas) é uma máquina de viciar e gastar gente. Por muito tempo andei querendo encontrar quem eu sou nos labirintos da perdição. É comum ver-se, nos puteiros, mulheres velhas, decrépitas, com uma pele só rugas, de pouco mais de quarenta anos. Obrigadas, pelas cafetinas, a beber a noite inteira, enquanto copulam até vinte vezes por dia, com a sucessão de maus tratos, as surras que recebem do cafetão e dos meganhas, as brigas, a insegurança, o medo e a permanente violência, e pelo fato de estarem sujeitas a contrair todos tipos de doenças venéreas, com poucos anos de "profissão", viram mulambos humanos.
Reencontrei um amigo que há tempos eu não via. Cabisbaixo, abatido, fisicamente deplorável, o sujeito, que é médico dos bons, daqueles à moda antiga, profissional que olha dentro dos olhos dos pacientes em busca de pistas, das chaves dos mistérios, que se preocupa mais com o doente do que com a doença, confessou andava desanimado e até depressivo por causa da condição atual da prática médica. Reclamou do excesso de trabalho, da má remuneração, da insegurança profissional, da desconfiança mútua entre médicos e pacientes. Para emendar, contou-me uma estória ocorrida com um seu colega de trabalho, também doutor, e que agora reproduzo, é claro, camuflando os nomes, azeitando o enredo, fermentando a verdade, inventando um bocadinho, aproveitando ao máximo a gostosura de um episódio real e deveras curioso. Em tempos de relação médico-paciente moribunda, o fato espelha bem esta condição. Foi mais ou menos assim que a coisa se deu...
Belinda, de linda mesmo, tinha de resto apenas o nome. Nos seus tempos de juventude e glória, foi muito cortejada e cobiçada pelos homens. Musa inspiradora de punhetas e noites mal dormidas. Escolheu para marido um burguês elegante, porém, tosco e de caráter menor, filho de um fazendeiro muito rico, criador de gado, ofício que hoje em dia muitos denominam empresário rural, que é para dar mais glamour, como se a roça não prescindisse disto. Não importa. O noivo nadava, ou melhor, cavalgava em dinheiro. Dizia-se, inclusive, à boca miúda, que o camarada limpava-se com cédulas de cinqüenta. Atraída pelo dote do mancebo, Belinda entregou-se ao mesmo de corpo e alma (muito mais corpo do que alma). Fisgou o ricaço e garantiu a aposentadoria aos vinte e poucos anos de idade. Até que tinha alguma afeição pelo moço, mas gostava muito mais do dinheiro e da mordomia que ele proporcionava. O rude garanhão desposou a donzela, pois a pressão familiar se avolumava. Ele não poderia romper os trinta anos sem contrair matrimônio. Naquela época, solteirões estavam fadados à maledicência da sociedade. Escravo das aparências, ele desposaria, sim, a fogosa virgem, mas não abandonaria as amantes, raparigas e até moçoilos modernos com mentes e meatos descolados, provenientes da capital e de outras metrópoles. Movido pela química desinibida da maconha, o rapaz encontrava nos iguais e nos opostos território propício para a vazão de taras e estripulias sexuais as mais bizarras.
Ao contrário das previsões paroquiais, o casamento não durou até que a morte os separasse. Advogados mal intencionados e bem remunerados cuidaram da tarefa com desprendimento e competência. O tempo, infalível a todo ser que respira, não se apiedou de Belinda. Aos quarenta anos, o seu tão cobiçado corpo havia deteriorado além da conta, às custas de três gravidezes, do sedentarismo e da gula. Sentindo-se feia e infeliz, ela buscou na ciência e no charlatanismo a cura para as suas dores e frustrações. Usou e abusou dos cremes, fórmulas milagrosas, agulhas, dietas de A a Z, garrafadas e simpatias antipáticas, porém, valiosíssimas para os desesperados.
Até que um dia, Belinda cismou de procurar um ginecologista para fazer uma desnecessária cirurgia vaginal, a fim de corrigir um inexistente defeito na sua pouco usada fenda genital, uma suposta rotura que a fazia se sentir “larga” na hora do vamos-ver, embora estivesse abstinente desde a separação do marido. Para se ver livre da insistência da paciente, o doutor acabou cedendo e, mesmo sem precisão, aplicou dois ou três nozinhos cirúrgicos em seu períneo, deixando o que já era muito bom melhor ainda. O ato cirúrgico foi o início de um calvário para o desavisado médico.
Logo após a cirurgia, ainda no período de convalescença imediata, a mulher foi tomada de um surto psicótico que criou um verdadeiro alvoroço dentro do hospital. Sabe-se lá como, a mulher fez entrar na enfermaria dezenas de revistas pornográficas, recortou algumas páginas e as pregou nas paredes, formando um mosaico libertino que ninguém aprovou. Como se não bastasse tamanha esquisitice, a pobre diaba ficava o tempo inteiro mirando a vulva com um espelho de mão, desaprovando o resultado final. Desacostumadas à insanidade, as enfermeiras da maternidade entraram em parafuso. O renomado ginecologista foi chamado às pressas para resolver a encrenca. Nem com a interferência de um psiquiatra, a coisa teve conserto. Para alívio de todos a paciente recebeu alta hospitalar e se mandou com uma revistaria toda embaixo dos braços e muita bravata pelos corredores mal iluminados.
Durante várias semanas, a mentecapta visitou a clínica do cirurgião para lhe dizer poucas e boas, insultos e verborragia impossíveis de serem citados nestas linhas. Prepotente, a mulher prometeu processar o médico, mandá-lo para a cadeia, destruir sua reputação por aquelas bandas, arrancar dele bastante dinheiro (de preferência, tudo), ainda que às custas de fórceps e chantagem. Apavorado, o doutor catou a família e sumiu da cidade. Com doido não se brinca. Melhor dar tempo ao tempo.
Mergulhada em loucura, a mulher desembestou num comportamento para lá de inconveniente, masturbando-se em locais públicos, vestindo-se de maneira claramente imprópria e vulgar, utilizando palavreado chulo, incomodando qualquer ser humano que por ela cruzasse, fosse ele adulto, criança, parente ou estranho. Sua derradeira aventura foi deitar-se com um catador de papéis e de tranqueiras que perambulava pela cidade. Fizeram do matagal de um lote baldio a cama mais perfeita para a conjunção carnal. Foi ali mesmo que o andarilho estreou a vagina seminova da criatura e a liquidou com mãos de unhas encardidas. Analfabeto, despreparado para crimes perfeitos, o sujeito foi rapidamente capturado pela polícia e jogado numa masmorra moderna chamada cadeia. Aliás, pelo que descreveu Dante Alighieri em sua Divina Comédia, os presídios brasileiros estão mais para sucursais do inferno. Difícil acreditar que um ser humano saia daquele purgatório recuperado de seus males e pronto para reingressar na sociedade. O povo, entretanto, não dá a mínima. Bandido tem mais é que sofrer...
Enfim, a extinção de Belinda deixou mais leve o cotidiano de todos naquele lugarejo, fazendo com que a vida retomasse o seu curso natural e hipócrita. A sua morte, portanto, foi de pouca ou nenhuma valia praquela gente. É assim mesmo que acontece nas tragédias, até que uma delas nos bate à porta sem pedir licença. Daí é chorar, implorar pela justiça dos homens e botar a culpa em Deus. Afinal, não foi Ele quem quis assim?!
Não dá para se fazer uma avaliação dos empreendimentos realizados por Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, sob a luz da conjuntura atual. Para avaliar esse ícone da História de Goiás, com o mínimo de justiça, é preciso, primeiramente, situá-lo no contexto do segundo quartel do século 18, no auge do período colonial.
Havia uma ordem mundial, cuja sustentação era o sistema colonial vigente. Havia um pacto que, simplificando, funcionava assim: A colônia (no caso Brasil, Goiás) entrava com a matéria prima, basicamente ouro e produtos agrícolas. Em troca a metrópole promovia a integração dentro de uma ordem econômica nacional e internacional e dava, sobretudo, proteção contra invasores estrangeiros.
Pelo Tratado de Tordesilhas de 1494, das terras descobertas na América do Sul, só era de Portugal o que ficasse a leste dessa linha, que ia do Rio de Janeiro à foz do Parnaíba, entre Piauí e Maranhão. Mas o tratado foi sendo derruído pela ação dos bandeirantes, que ignoravam a divisória e iam adentrando os sertões. Não fosse a ação desses homens intrépidos, o Brasil teria hoje mais ou menos um décimo de sua extensão territorial. Goiás mesmo seria resultante da colonização espanhola. Talvez a gente não fosse um estado-membro, mas estado um soberano, assim como Paraguai, Bolívia, Honduras, Nicarágua.
O historiador Afonso Taunay considera o Anhangüera como um dos mais brilhantes servidores da Coroa Portuguesa de todos os tempos. Foi destemido, realizador, operante e honesto (coisas que tanto nos carecem hoje em dia). Sua bandeira que descobriu as minas dos Goyazes foi extremamente arriscada, mas muito bem sucedida. Pelos feitos extraordinários, a Coroa o premiou com o pedágio dos rios, de São Paulo até Goiás, com faixas de terras às margens da estrada, além de tê-lo nomeado o primeiro superintendente das minas.
Na prática, Anhangüera foi o nosso primeiro governador, enfeixando nas mãos o executivo, o legislativo e o judiciário (não há que taxá-lo de ditador, pois só meio século mais tarde é que Montesquieu conceberia o sistema de separação de poderes). Apesar das dificuldades e de todo tipo de carências, implementou a mineração com eficácia, descobriu novas frentes de ouro e diamante, atendendo aos anseios da Coroa, como um administrador diligente.
Seu sucesso despertou ira invejosa em outros políticos. Nessa disputa de bens e poderes, Anhangüera foi covardemente prejudicado. Primeiramente lhe afanaram as passagens dos rios, que eram uma fonte considerável de renda. Depois lhe tomaram as terras. Na tentativa de recuperar seus bens, recorreu à justiça portuguesa. Seu sobrinho Bento Paes, advogado, morreu afogado em Lisboa, quando atuava no processo. Seu genro João Leite (que dá nome a um dos rios que serve Goiânia) foi assassinado por um integrante de sua comitiva, a caminho de Lisboa, para onde ia atuar no processo.
Anhangüera foi rebaixado a comandante das forças (que não existiam). Em 1739, o novo governador, vendo a injustiça que sofria e a penúria por que passava, lhe concedeu uma arrouba de ouro como antecipação de seus direitos. E em sua homenagem chamou o distrito de Santana (fundado por Anhangüera) de Vila-Boa (Bueno do castelhano). E esta foi a primeira capital do Estado.
Mas Anhangüera parece ser mesmo um herói fatal. Dado a sofrer perseguições até séculos depois de sua morte. Não é de ver que agora há políticos, não sei se por ignorância ou má-fé, que lhe atribuem estupros de índias e outros crimes hediondos e querem derrubar sua estátua do centro da cidade?
Se uma palavra pode definir o mundo publicitário, creio que é esnobismo. É que a publicidade é a cara do mundo, digo, do capitalismo, digo, o lado rico, endinheirado, do capitalismo. Talvez não pudesse ser de outro jeito, para quem, profissionalmente, precisa conhecer a alma do sistema, para vendê-la. São irmãos siameses, mercado e publicidade: só existe esta em função daquele. Acabou o mercado, acabou a publicidade – a que vende de tudo, é claro: inclusive a imagem de um homem, se preciso. A arte, não: existe desde sempre; existirá sempre. O Arquipélago Gulag sobreviveu a Stálin. Mc Donald`s, entretanto, não pisou a Rússia antes de Gorbatchov. Não antes, portanto, que houvesse mercado.
Talvez pudéssemos dizer que a publicidade é a irmã pobre, da arte, embora ela é que tenha aparência aristocrática. A irmã que anseia pelos atributos da arte, mas que não pode ser arte. Não é sua condição existencial. Salvo raras exceções – Matisse, Jorge Guillén etc -, arte normalmente é revolta, antipatia, asco, nojo, repulsa – a publicidade, embora se vista de arte (pois está sempre no encalço da estética, fetichista) não pode nunca se dar o luxo de ser do contra. É o oposto: o espelho da ordem. Precisa iludir. Precisa maquiar, adornar, não despir. Quem fala a verdade sobre a nossa condição é Francis Bacon: as vísceras da espécie. A publicidade, não: se limita a ser o pacote, a superfície, a aparência: é Roberto Justus (não o homem, mas o arquétipo). Arte é arte; publicidade, artifício.
A arte é operação gratuita, e talvez por isso é revestida de uma aura superior. A publicidade, não: pragmática, tem preço. Só se manifesta se lhe pagam bem. Talvez por isso tenha sempre aquela cara. Aquém do além.
A intenção da arte não é vender, nunca. Encontra comprador sem procurar. Não corre atrás, orgulhosa. A publicidade, pelo contrário, só existe em função do mercado: vende tudo. Humilde e humilhada, se vê na obrigação de correr atrás, qual ambulante qualquer. A arte é única; a publicidade, vária. Só existe um Nu descendo a escada, mas podem existir quantos anúncios se desejar, de uma campanha. Publicidade é equipe; arte, solidão. Não adianta falar no grupo tal: arte é, por excelência, solidão. Procure o Vinicius de Morais pra saber. E favor não confundir arte com indústria cultural, que é, por exemplo, o forte do mercado fonográfico e Romero Brito.
O capitalismo odeia solidão, embora a promova sistematicamente. A arte é, muitas vezes melancólica; já a publicidade é, necessariamente, gregária, sempre alegre e extrovertida. Suspeito que seja uma fórmula de sucesso, uma embalagem: ou o profissional age assim ou, no dizer do outro, está demitido! O capitalismo é tribal; a arte, Ralph Waldo Emerson – apóstolo do individualismo. Curiosamente, as grandes causas contam com a abnegação dos artistas. O individualismo destes flerta amiúde com a solidariedade e com o ser; o do publicitário pode não ser menos solidário, mas anseia primeiro, e antes de tudo, pelo ter. O publicitário é um homem, no mínimo, simpático ao consumo, e de alto padrão.
Enfim, não fosse porque se veste bem - muito bem -, a publicidade não iludiria ninguém. É útil e necessária, ao capitalismo. A arte – seu suplício de Tântalo - ao homem.