O sambista Ataulpho Alves era um gênio popular sofisticado
Um dos melhores críticos de música do País, Ruy Castro, escreveu, na biografia “Carmen — A Vida de Carmen Miranda, a Brasileira Mais Famosa do Século XX” (Companhia das Letras, 597 páginas), que “Ó seu Oscar”, de Ataulpho Alves e Wilson Batista, cantada por Ciro Monteiro, é um “supersamba”. Noutro livro, Castro diz que André Midani, ao assumir o comando de uma gravadora, queria arrancar o “ranço” de Ataulpho. Começava aí o Estado Novo da música brasileira, com a hegemonia de novo ranço, o de João “Vargas” Gilberto.
Entre suas músicas mais famosas estão “Ai, que saudades da Amélia” (com Mário Lago), “Atire a primeira pedra”, “Laranja Madura” (de certo modo, um contraponto para “Amélia”), “Pois é”, “Mulata assanhada”, “Meus tempos de criança”, “O bonde de São Januário”, “Errei, Erramos”, “A você” (com Aldo Cabral). Alguns dos intérpretes de suas músicas: Ciro Monteiro, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Nelson Gonçalves, Elza Soares, Elizeth Cardoso, Emilinha Borba, Francisco Alves, Carmen Miranda, Almirante, Aurora Miranda. Era um gênio popular, mas tremendamente sofisticado.
No excelente “Uma História da Música Popular Brasileira — Das Origens à Modernidade” (Editora 34), Jairo Severiano escreve: “A partir dos anos 40, melhorou a produção de sambas — são desses anos obras-primas como ‘Ai, que saudades da Amélia’ e ‘Atire a primeira pedra’ (Ataulpho Alves e Mário Lago). (...) Ataulpho [o historiador prefere a grafia Ataulfo] está entre os compositores brasileiros de obra mais extensa, com cerca de 400 canções gravadas, sem queda de qualidade e popularidade”. Jairo Severiano é um dos maiores, senão o maior, historiador da música popular patropi.
Na obra-prima “A Canção do Tempo — 85 Anos de Músicas Brasileiras” (Editora 34, 366 páginas), Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello dizem que o verso “eu era feliz e não sabia”, da música “Meus Tempos de Criança”, é “antológico”. Não há razão para discordar. Hoje, todos citam o verso, mas não se lembram que é uma criação de Ataulpho. Na biografia “No Tempo de Ari Barroso” (Lumiar Editora, 467 páginas), Sérgio Cabral diz que Ari Barroso considerava Ataulpho “o melhor compositor brasileiro”.
A biografia “Ataulpho Alves — Um Bamba do Samba” (272 páginas), de Luizito Pereira, não é um “Barack Obama”, mas fornece os dados básicos da vida do compositor e, menos, cantor, além de contar histórias deliciosas.
No Estado Novo, o governo de Getúlio Vargas encomendou músicas positivas, com o objetivo de conter a malandragem e incentivar o trabalho — uma espécie de ética protestante patropi. Ataulpho, queridinho de Vargas, e Wilson Batista compuseram “O bonde de São Januário”. Um trecho diz: “O bonde de São Januário/Leva mais um operário,/Sou eu quem vou trabalhar”. A música, embora otimista, foi vetada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo. Vargas, irritado, convocou Ataulpho para se explicar. O compositor foi ao Catete e examinou a letra. Wilson Batista, no lugar de “operário”, escreveu “otário”.
O breque que mudou uma música
O pesquisador Luizito Pereira conta a interessante história da feitura de “Ó, seu Oscar”. “Wilson Martins entregou a Ataulpho a primeira parte do samba com a letra e a música prontas. O mestre [Ataulpho] mostrou ao parceiro que havia um buraco muito grande da frase ‘logo a vizinha me chamou’ até ‘está fazendo meia hora’, pedindo um breque neste espaço. Wilson Batista ficou bravo, discordou do mestre, dizendo para ele não mexer na música, e que fizesse a segunda parte com a mesma perfeição que ele fez a primeira. Ataulpho ficou aborrecido com a resposta do parceiro e no bonde que o levava ao Méier, cantava repetidamente a melodia, achando que faltava o breque”.
Já em sua casa, Ataulpho pegou o violão e começou a tocar, pensando na música de Wilson Batista e acrescentou um trechinho que mudou tudo: “Cheguei cansado do trabalho/Logo a vizinha me chamou:/Ó seu Oscar”. Luizito Pereira diz, com razão, que “o encaixe do ‘Ó seu Oscar’ era o que faltava, o breque certo, ao ponto de o samba, que deveria chamar ‘Está fazendo meia hora’, passou a ser ‘Ó seu Oscar’. Ataulpho procurou Ciro Monteiro, ensaiou com ele a música, foi feita a gravação que resultou no maior sucesso do ano [1940], mas Wilson Batista nunca tocou no assunto, nem para parabenizar o parceiro”. O caso é interessante, pois, como costuma dizer o brilhante músico Joachim Decker, as pessoas tendem a pensar que a letra é tudo e que a música é apenas o colorido. Não fosse o breque, uma frase com nove palavras, o destino da música de corno teria sido outro.
Ataulpho também fez mudanças acertadas em “Amélia”, deixando Mário Lago, inicialmente, contrariado. Feministas entenderam a música de modo errado. Não se trata de um hino à submissão, e sim à solidariedade e à compreensão mútua entre um casal. Já a belíssima “Laranja Madura”, que as feministas deveriam ter adotado como hino, é uma crítica ao machismo, ao fato de o homem dizer que sustenta a mulher.
Em turnê pelo Brasil, Louis Armstrong foi convidado para um almoço com o presidente Juscelino Kubitschek, no Palácio das Laranjeiras. Entre os convivas Ataulpho.