Hannah Arendt: a filósofa como poeta

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Duas intelectuais americanas foram estrelas do jet set literário — Susan Sontag e Camille Paglia. Falecida em 2004, aos 71 anos, Sontag não se contentava em ser crítica, comentadora de, entre outros, Machado de Assis, de quem era fã e, de algum modo, imitadora. Tentou também ser prosadora, e esteve no Brasil para lançar, pela Companhia das Letras, seu terceiro romance, “O Amante do Vulcão” (424 páginas). Era mais um crítica tentando mostrar que sabia escrever, talvez até para se justificar como crítica. Detestava Paglia, dizia que a autora de “Personas Sexuais” é uma piada e deveria formar uma banda de rock. É o caso de dizer que Sontag é uma piada e deveria ter criado uma banda de jazz. É briga inútil, de gente quase menor. Paglia começou bem, ganhando elogios de Harold Bloom, mas desandou e passou a escrever ensaios elogiando a cantora Madonna e, mais recentemente, em visita ao Brasil quase chegou a dizer que a cantora Daniela Mercury é a Machado de Assis da música patropi. É melhor comentar autores adultos, como Gustave Flaubert (1821-1880) — autor de “Madame Bovary” (publicado quando tinha 34 anos) e “A Educação Sentimental” — e Edmund Wilson, ensaísta brilhante e até romancista (do terceiro time), autor de “O Castelo de Axel”, “Rumo à Estação Finlândia” (que vendeu mais no Brasil que nos Estados Unidos) e “Sangreira Patriótica” (“Patriotic Gore”).
James Joyce, devido à sua prosa inventiva, deu sorte: seu romance “Ulisses” (1112 páginas) ganha mais uma tradução em português. A tese de doutorado de Caetano Waldrigues Galindo é a tradução do cartapácio do escritor irlandês. Do pouco que li, percebo que o professor resgata a oralidade de Joyce e sua linguagem de artesão-chique.
Entrevistado pelo repórter Antônio Gonçalves Filho, do “Estadão”, Galindo frisa que Joyce não tinha nenhum amor por hifens. A recusa ao uso de hífen, afirma Galindo, “acaba gerando a criação de várias palavras aparentemente novas mas que são apenas uma representação gráfica de um composto conhecido ou mesmo uma junção de substantivo e adjetivo totalmente normal”. O tradutor frisa que não inventou palavras. “O que pode ser que eu tenha feito, assim como outros tradutores, foi forçar limites possíveis da língua portuguesa e da literatura brasileira, para criar novas combinações e novas fusões.” O “inventor” de palavras, se se pode dizer assim, foi mesmo Antonio Houaiss, o primeiro tradutor de “Ulisses” no Brasil.
O professor Declan Kiberd, ouvido por Gonçalves, diz que “Ulisses” é o “épico do corpo”. Escreve Gonçalves: “Não foi outro irlandês, Oscar Wilde, o pioneiro a apresentar o ‘homem feminil’ na literatura, anota Kiberd, mas Joyce, que, segundo ele, ‘mudou para sempre o modo como os escritores tratavam a sexualidade’”. Leopold Bloom, principalmente, nada tem a ver com machão típico da literatura por exemplo de Ernest Hemingway. E a Molly Bloom do romance realmente não tem nada da mulher idealizada dos românticos ou mesmo das feministas. É mais livre do que querem as feministas e do que aceitam os homens em geral.
Ensaios do jornalista-polemista que incomodou o ex-presidente americano Jimmy Carter, publicados em livro, provam que sobreviveram à corrosão implacável do tempo
Depois de 15 anos da morte do jornalista e escritor Paulo Francis (1933-1997), a Editora Três Estrelas, do grupo que edita o jornal “Folha de S. Paulo”, lança um coletânea de seus artigos (há verdadeiros ensaios) no livro “Diário da Corte” (407 páginas). O subtítulo, “Crônicas do maior polemista da imprensa brasileira”, certamente não agradaria o profissional. Mesmo na coluna “Diário da Corte”, Francis se considerava, acima de tudo, jornalista, e não cronista. Um dos motivos de sua irritação com o ex-ombudsman da “Folha” Caio Túlio Costa tem a ver com o fato de ter sido apontado como “cronista”. Se a edição não fosse “cordial”, e se a reportagem do jornal que anunciou o livro não o tivesse chamado de “erudito” — Francis não se preocupava em ser erudito, só era menos pedestre do que a maioria dos colegas de profissão —, o leitor adepto de teorias conspiratórias possivelmente pensaria que se trata de uma vingançazinha sutil. Os textos, publicados na “Folha” de 1976 e 1990, resistiram à corrosão implacável do tempo? A maioria sobreviveu e poucos estão roídos pelas traças da história, como as palavras apaixonadas e equivocadas sobre Fernando Collor, que Francis via como modernizador e, até, “homem branco e bonito” (na verdade, Collor tem cara de capataz escravagista e de discípulo de Simão Bacamarte). Em 1971, antes de migrar para a “Folha”, atacou Roberto Marinho, no “Pas¬quim”: “Um homem chamado porcaria”. Arrependeu-se, como fez várias vezes. O economista Roberto Campos, que passara anos espezinhando, passou a ser citado como “o guerreiro Roberto Campos”. Ele, segundo Francis, melhorava “horrores, em pessoa”. “Escrevi coisas brutais sobre Campos. São erradas. Retiro-as. Cheguei à conclusão de que capitalismo num país rico é opcional. Num país pobre, no tipo de economia inter-relacionada de hoje, a suposta saída que se propõe no Brasil de o Estado assumir e administrar leva à perpetuação do atraso”. Em 1977, Francis escreveu que seu epitáfio ideal era: “Paulo Francis, 1930-etc., não era um chato”. “O objetivo deste livro é lembrar que, ao menos nesse tópico, ele estava certo”, diz, com acerto, Nelson de Sá.
O valor de um intelectual deveria ser medido pela quantidade de gente a quem consegue desagradar. Neste item, ninguém melhor, nos dias que correm, que o filósofo inglês John Gray. Com uma argumentação coerente e límpida, Gray ataca, em “Missa Negra — Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias”, (Record, 352 páginas, tradutor Clóvis Marques), os fundamentos filosóficos e culturais das grandes correntes políticas da modernidade, dedicando um número equitativo de páginas para espinafrar jacobinos, marxistas, nazistas, liberais, integralistas islâmicos, trabalhistas ingleses e neoconservadores norte-americanos. Pouca gente escapa das agulhadas de Gray, preocupado em demonstrar que o regime teocrático iraniano fundado pelo Aiatolá Khomeini, os totalitarismos do século XX e as políticas agressivas e imperialistas de George W. Bush, nada mais são que manifestações de uma leitura apocalíptica da história, cuja teleologia foi descoberta e explicitada sob a forma de doutrinas políticas preocupadas em alterar a própria natureza humana. Na origem de tudo encontram-se mitos fundadores do próprio Ocidente cristão, comunicados também a outras culturas pela difusão do Iluminismo.
Vistos pelo pano de fundo de tais mitologias apocalípticas, os modernos movimentos revolucionários constituem uma continuidade das religiões por outros meios, o que Max Weber denominou de religião laicizada. Para demonstrar tal proposição, Gray remonta às visões milenaristas que periodicamente manifestam-se na história, dos tempos bíblicos aos atuais, pregando alguma variante escatológica de fim do mundo (ou da própria história), com o advento de uma era de ouro marcada pela prosperidade e pelo progresso infinito. Tais crenças messiânicas, que estão na base do cristianismo, foram mitigadas por pensadores como Santo Agostinho (354-430 d.C.) que duvidou da capacidade humana de eliminar o mal do mundo. Baseando-se numa antropologia negativa, que acreditava que os seres humanos são irremediavelmente imperfeitos, Agostinho reforçou nesta tradição do cristianismo um forte conteúdo realista, propondo que o fim dos tempos fosse percebido em termos puramente espirituais. Com base em tais premissas, argumenta Gray, esta doutrina “conferiu ao cristianismo uma disposição antiutópica que ele nunca perdeu completamente, sendo os cristãos poupados da desilusão que se abate sobre todo aquele que espera mudanças muito profundas nas questões humanas”.
O livro “Brasil: Nunca Mais” não esgota a discussão sobre a tortura no país, apesar do levantamento exaustivo. Há muito a se pesquisar.
Não basta ler livros sobre tortura. Para compreender o golpe de Estado de março/abril de 1964 e os governos militares é preciso ler vários livros, como “1964: A Conquista do Estado” (Vozes, 899 páginas), do uruguaio René Armand Dreifuss. É um trabalho bem documentado. Talvez ajude a “espantar” a tese de que a ditadura instaurada em 1964 foi só militar. Para se obter informações mais gerais, numa exposição didática e simples (às vezes simplista), pode ser consultado “Brasil: De Castelo a Tancredo” (Companhia das Letras, 483 páginas, tradução de Berilo Vargas), do brasilianista Thomas Skidmore.
O jornalista Elio Gaspari escreveu a série Ilusões Armadas, em quatro volumes. “A Ditadura Envergonhada” (417 páginas), “A Ditadura Escancarada” (507 páginas), “A Ditadura Encurralada” (525 páginas) e “A Ditadura Derrotada” são obras fundamentais para compreender do golpe de 64 ao governo de Ernesto Geisel. Os livros são bem-escritos e, sobretudo, contêm uma pesquisa exaustiva em documentos inéditos dos governos militares. Eles superam, com folga, a síntese de Skidmore. Alfred Stepan, um brasilianista competente, escreveu “Os Militares: Da Abertura à Nova República”. Stepan faz o que os estudiosos brasileiros em geral não fazem: estuda os militares sem preconceito, objetivamente. Mostra, por exemplo, que Geisel seguia as teses de Maquiavel de como conservar o poder. Bernardo Kucinski fez um estudo radical em “Abertura — A História de uma Crise”. O jornalista perdeu a irmã, vítima dos militares. A pesquisa mais criteriosa sobre a Abertura é “História Indiscreta da Ditadura e da Abertura — Brasil: 1964-1984” (Record, 517 páginas), tese de doutorado do economista e historiador Ronaldo Costa Couto apresentada na Universidade de Paris.
“O Imperador de Todos os Males — Uma Biografia do Câncer” (Companhia das Letras, 634 páginas, tradução de Berillo Vargas), do oncologista Siddhartha Mukherjee, professor da Universidade Columbia, é um livro brilhante. Conta a história da doença desde o seu “início” — há milhares de anos — e nota que sua expansão se deve à civilização. Mukherjee, que ganhou o Prêmio Pulitzer com o livro, escreve muito bem, sem usar, em nenhum momento, o impenetrável jargão acadêmico. Trata-se de uma obra séria, que certamente não desagrada o especialista e agrada muitíssimo o leigo. “O câncer”, diz Mukherjee, “é uma das doenças mais antigas já vistas num espécime humano — muito provavelmente a mais antiga”.
Há registro em documentos provando que o câncer era conhecido há centenas de anos. Arqueólogos descobriram, em 1914, uma múmia egípcia de 2 mil anos “com um tumor invadindo o osso da bacia”. Louis Leakey “descobriu um maxilar datado de 2 milhões de anos atrás que traz os sinais de uma forma peculiar de linfoma encontrada endemicamente na África meridional”.
Ante as informações de que os índices de câncer crescerem no Estado, os goianos suspeitam que tem a ver com o acidente do césio 137. A causa tende a ser outra. “O câncer é uma doença relacionada com a idade — às vezes exponencialmente. O risco de câncer de mama, por exemplo, é de cerca de um em quatrocentos numa mulher de 30 anos e aumenta de um para nove numa de setenta. Nas sociedades mais antigas, as pessoas não viviam o suficiente para desenvolver o câncer. Homens e mulheres eram consumidos bem antes por tuberculose, hidropsia, cólera, varíola, lepra, peste ou pneumonia” (nos Estados Unidos, no século 19, a pessoa vivia em média 47 anos).
Uma pequena obra-prima da crítica literária acaba de chegar ao Brasil. No livro “Estudos Sobre a Literatura Clássica Americana” (Zahar, 253 páginas, tradução de Heloísa Jahn), o inglês D. H. Lawrence analisa, às vezes de forma brilhante, a literatura de Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne, Herman Melville e a poesia de Walt Whitman (que influenciou sua poética).
Lawrence, prosador e poeta dos melhores, comparável ao próprio Whitman e mesmo ao britânico William Blake, examina também a literatura de Fenimore Cooper, de forma inventiva e independente, de Richard Henry Dana e de Hector St. John de Crèvecouer. Analisa inclusive Benjamin Franklin. É uma delícia a inteligência de Lawrence tentando justificar a literatura do segundo time, mas divertida e prazerosa, de Cooper. Este é como Jack London: excelente autor do segundo time da literatura universal. Os dois são grandes contadores de histórias, com uma prosa meio relaxada e sem o mesmo alcance de Mark Twain, que Lawrence não destaca.
O livro é da década de 1920 e Lawrence morreu em 1930, aos 44 anos. Ter informação sobre o período é importante, sobretudo porque, para escrever os textos, no geral originais, o crítico e escritor inglês não contou com ampla fortuna crítica como suporte para suas ideias e análises. Isto mostra que sua capacidade de examinar os autores americanos, com autonomia de julgamento e capacidade de entendê-los minuciosamente, era a de um crítico extremamente perceptivo.
O comunismo foi derrotado em todos os lugares do mundo — inclusive na China. Neste país, deu-se um fenômeno curioso: o capitalismo salvou a “nomenklatura” vermelha. Entretanto, se o socialismo perdeu a guerra — uma derrota provisória, avalia o respeitável historiador marxista Eric Hobsbawm —, no campo da perspectiva histórica, a esquerda, pelo menos em termos editoriais, permanece vitoriosa. Sua influência permanece ativa em revistas, jornais e livros.
Parte dos livros resenhados e aprovados é de autores que comungam o credo esquerdista ou são simpatizantes. Muito disso ocorre devido à linguagem. No campo da linguagem, a direita e o centro políticos não conseguem competir com a linguagem dos reds. A linguagem geral, mesmo de quem não é adepto das ideias de Karl Marx e Lênin, está impregnada pelo pensamento dos dois autores-políticos. Daí a dominação do discurso do “social” contra ou sobre o discurso da “produção”. O liberal patropi, em seus discursos pelo menos, fala praticamente a mesma linguagem, com variações, da esquerda light. A dominação cultural é evidenciada na maioria dos livros resenhados. A Editora Peixoto Neto tem publicado livros de qualidade, como “O Terrorismo Intelectual — De 1945 Aos Nossos Dias”, de Jean Sévillia, “O Poder — História Natural do Seu Crescimento”, de Bertrand de Jouvenel, e “Radicais nas Universidades — Como a Política Corrompeu o Ensino Superior nos Estados Unidos da América”, de Roger Kimball, mas, quando o leitor abre os suplementos “Prosa & Verso”, de “O Globo”, “Sabático”, de “O Estado de S. Paulo”, e “Ilustríssima”, da “Folha de S. Paulo”, e as revistas “Veja” — a mais aberta ao discurso liberal — e “Época”, percebe que os livros citados não foram e possivelmente não serão resenhados. A Peixoto Neto acaba de lançar o excelente “O Filho Radical — A Odisseia de Uma Geração” (554 páginas, tradução no geral esmerada de Camila L. Campolino), de David Horowitz. Richard Gid Powers escreveu, no “The New York Times Review”: “Um livro corajoso e franco”. Horowitz foi de esquerda durante anos e, depois, migrou para a direita. Tornou-se “o mais odiado ex-radical de sua geração”. Ao deixar a esquerda, descobriu que a esquerda “odeia” — e combate — mais seus adversários (sobretudo os “caídos”), que trata como inimigos, do que a direita.